Existência virtual: ou ressurreição num disco

Há dias pensei ter perdido vários anos de trabalho, e mais alguns de memória pessoal, com uma máquina queimada -- e as salvaguardas (como eu me refiro aos "backups")... não existentes.

Vicissitudes de um trabalho digital? Ou de mal-entendidos práticos na encomenda de uma máquina virtual? Ou... (não ou, e) sempre deixar para amanhã a parte chata de fazer cópias e sobretudo separar o trigo do joio. Reconheço, e penso que muitos são como eu :-(

Por isso, esta perda, que -- por milagre, e por ajuda de muitas pessoas envolvidas a quem estou muito grata -- foi reparável, levou-me a pensar na infraestrutura que cada vez mais as pessoas desleixam, deixando para nuvens, facebooks ou googles -- empresas tudo menos inocentes a gestão e o assegurar (e segurar) das nossas coisas.

Cada vez mais a pessoa normal (estou a definir como pessoa normal todos os que não são nerds de informática) depende de uma série de "serviços" comerciais de que nem sequer faz ideia que existam, mas que passam a ser "direitos" de uma sociedade civilizada (a palavra civilização já perdeu qualquer brilho, significa apenas o oposto da natureza profunda).

Cada vez mais as escolhas de produtos ou equipamento (ou programas) são feitas por uma lógica do fácil, do barato, do "que o utilizador gosta", sem que se equacionem minimamente coisas como segurança, qualidade, controlo por parte do utilizador, privacidade, e mesmo simplesmente capacidade. Não tem, não faz? Compre a nova versão! Deixou de funcionar? Venha cá e nós instalamos outra coisa. O seu sistema é antigo de mais, aconselhamos a reinstalar (deixar reinstalar). Não, para essas versões já não temos nada que funcione.

Isto infelizmente não é sequer só o departamento comercial, eu diria que muitos senão todos os informáticos aderiram à "última moda", ou seja, os sistemas "legacy" são uma chatice, e os utilizadores são todos uns idiotas.  E daí cada vez mais uma sociedade digital em que quase todos são analfabetos, por muitos cursos universitários que tenham tirado.

Estou plenamente consciente de que a questão da segurança informática é uma das razões porque um administrador de sistemas tem de andar sempre a atualizar o sistema, e que um sistema móvel tem de andar sempre à procura de sinal... mas isso por outro lado faz com que as nossas maquininhas (telemóveis, tabletes, PCs) estejam sempre a comunicar nem nós sabemos com quem. E que por isso o Bib Brother do Orwell era uma versão muito pálida dos vários sistemas que sabem onde nós estamos, o que fazemos e o que pensamos espalhados por aí.

É verdade que podemos usar esta panóplia digital para chegar a muitos (?) outros que não nos leriam nem conheceriam se não fosse por exemplo a possibilidade de um blogue... mas será que a balança pende para a liberdade de expressão?

Voltando à existência virtual. Se quase toda a nossa comunicação (com os outros e conosco) é apanhada pelo teclado ou pelo microfone, a partir de quando estes são partes do nosso corpo e da nossa identidade? A partir de quando a sociedade humana é a internete, ou seja, toda a comunicação (ou falta dela)  tem um IP e uma estampilha temporal e geográfica (em termos da internete)?

Daqui a 100 anos, quantas das nossas ordens aos nossos membros (artificiais?) serão dadas através de comandos informáticos? Quantas "pessoas" são substituídas virtualmente e portanto podem ser ressuscitadas? Ou, sem entrar em questões demasiado metafísicas, até que ponto é possível preservar a memória através do que a pessoa escreveu e disse?

Estamos apenas no início de uma mudança no estatuto da memória. Se escrevemos para não esquecer, assim como escrevemos as nossas ordens e pedidos, o que escrevemos passa a ser quase nós (e estou a falar en escrever mas podia falar em filmar), daqui a pouco não precisamos de lembrar, é só ir à internete. O que dará um Alzheimer coletivo à sociedade humana. Isto faz-me lembrar o livro do Clã do urso das cavernas, em que Jean Auel sugere que a capacidade de memória dos Neanderthal foi substituída pela nossa capacidade de aprender.

Há pouco, soube de uma editora que disse que as escolas não querem dicionários com vários sentidos, porque isso confunde os alunos! E outros que sugerem ensinar alemão sem dar os casos (muda-se o que se ensina porque os pobres dos alunos não dão para mais), assim como não aprender a tabuada (sobre isto remeto para o artigo do Nuno Crato no livro Passeio Aleatório).

Mas: já repararam que a internete não está sempre lá? Que às vezes as páginas desaparecem? Que, de repente, o que lá esta mudou? Que ao contrário de um um livro impresso ou um pergaminho com tinta, uma página é virtual, inconstante, e manipulável? É verdade que a memória nos prega partidas. Mas a internete é pior do que a nossa memória, porque pode ser controlada por várias pessoas que pregam partidas muito piores.

Sim, a internete é uma maravilha. Mas também é a fonte ou possível causa de muitos males (antes nunca sequer pensados ou prevenidos). E embora esteja feliz, muito feliz, pela ressurreição -- aliás devida a pessoas, várias pessoas -- não posso deixar de refletir sobre a mudança na vida dos seres humanos.

 

Av Diana Sousa Marques Santos
Publisert 11. juli 2015 16:22 - Sist endret 15. juli 2015 10:28